segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Vida intelectual versus vida de curiosidade

Um intelectual é um homem, e por ser homem está obrigado a ter uma vida interior. A solidão é a proteção da verdadeira vida interior, não é algo negativo, mas a proteção de algo positivo


(Esta conferência foi proferida na Jornada de Formação do MJCB em 2012. Apresentamos aqui a sua transcrição).
Pe. Luiz Cláudio Camargo FSSPX | Permanência: A obra que estamos propondo realizar em nossos priorados consiste exatamente na idéia da universidade: versus unum. A universidade é a reunião de todas as faculdades, iluminadas pela Teologia. A nossa vida precisa alcançar essa unidade mais elevada, e o lugar privilegiado para isso, na situação em que nos encontramos hoje, são os nossos priorados.
Quero comparar aqui os elementos normais da vida intelectual — o ato, a estrutura da vida interior — com a sua deformação. Gostaria de comparar a vida intelectual com a vida de curiosidade, e daí tentar tirar os conselhos práticos para a vida especulativa.
Pode-se dizer que há duas partes no esforço intelectual. Em primeiro lugar, há o que se pode chamar de studium, o estudo. Em latim, a palavra studium significa esforço. É interessante notar que toda a primeira parte, a do esforço intelectual, por causa da união e da relação entre o corpo e a alma, é necessária para se chegar ao ato específico em que a inteligência enxerga o seu objeto. Ela exige um esforço muito grande. O modo pelo qual chegamos ao conhecimento é um modo laborioso, chamamo-lo de modo racional. É necessário ruminar até se chegar ao saber. Em seguida, temos um ato próprio, específico, e o efeito próprio pelo qual a inteligência vê o seu objeto, alcança-o, pode ser chamado de gaudium. Então, alcança-se a idéia e a alma repousa.
Veremos quais as condições desses três passos numa vida intelectual normal, e a sua deformação numa vida de curiosidade.
A primeira consideração, nessa primeira etapa do studium, é a de que, como já se viu, não tratamos de uma atividade qualquer na vida do homem, mas da sua própria essência. Por isso falamos de uma vida intelectual, e não simplesmente de uma atividade intelectual. É, portanto, necessário organizar a vida, é necessário colocar o saber como o princípio que organizará toda a vida.
Se observarmos atentamente, veremos que essa organização da vida nos é dada pelas circunstâncias. Deixamo-nos arrastar por elas e, assim, tornamos impossível a vida intelectual. A maneira moderna de viver impossibilita a vida intelectual e por isso devemos lutar, puxar a espada e nos organizar, dispor os elementos da nossa vida.
A idéia central do livro A vida intelectual, do Pe. Sertillanges, é a seguinte: é preciso dispor e organizar toda a vida para se conseguir uma vida intelectual.
Nessa organização, nós nos deparamos com a necessidade de dispormos as coisas, a fim de se chegar ao que chamamos comumente de estudo. O Pe. Sertillanges diz que se conseguirmos estudar duas horas por dia, poderemos alcançar uma séria e verdadeira vida intelectual. Então não será uma vida comum, mas uma verdadeira vocação intelectual.
Muitos de vocês me dirão que duas horas é algo impossível. Eu lhes pergunto, fazendo um exame de consciência público: quantas horas por dia passam na internet? E juntando a internet com a televisão? E juntando a internet, a televisão e as revistas? Quanto tempo? É preciso organizar a vida…
Podemos dizer que o estudo está centrado na leitura. É preciso saber ler, e nós não sabemos ler. A leitura, nesse primeiro momento do studium, é uma leitura laboriosa, exigente. É preciso encontrar a estrutura do que se lê. É preciso descobrir a ordem do que nos está sendo apresentado. É preciso chegar aos meios e métodos para alcançar essas idéias e retê-las. Lemos pouco, do pouco que lemos entendemos menos ainda, e, do que entendemos, não guardamos nada. Cumpre organizar-se para não se ter uma “bolsa furada”. Esse studium, essa organização do meu estudo deve ser feita de tal maneira que eu não trabalhe em vão, que meu trabalho não me seja inútil.
Muitos de vocês me perguntaram o que se deve estudar. Encontrar o objeto de estudo adequado ao nosso estado é algo importante e é um efeito do esforço e do trabalho. A grande virtude exigida para se encontrar esse objeto é a de saber o que não se deve saber, é a de saber limitar-se. Num dos Dezesseis conselhos de Santo Tomás ao estudioso, ao intelectual, diz ele que se deve chegar ao grande rio por pequenos riachos.
É necessário também saber renunciar. Eis um elemento importantíssimo para se encontrar o objeto. E, sabendo renunciar, tendo a constância do objeto, é impressionante o quão longe podemos chegar.
Se me permitem um relato pessoal, uma das coisas que mais me impressionou no seminário foi a organização diária em direção à vida interior, a maneira como estávamos obrigados a deixar o que é secundário e a nos dedicar ao ponto que se estudava; como, dedicando-nos ao pequeno, alcançávamos muito rapidamente o grande. É algo surpreendente.
Em seguida, nessa mesma ordem de esforço, surge a necessidade de síntese, de encontrar, comparar e chegar à unidade do que se estuda. Nessa estrutura da vida intelectual é preciso cuidar dos mínimos detalhes; é preciso, por exemplo, lutar pelo horário de estudo, conseguir dispor o horário.
Muito facilmente falamos do desejo da vida intelectual e, no entanto, não temos horário para acordar, não temos horário para comer, não temos horário para sair nem para voltar, não temos horário para estudar. Achamos que se pode estudar a qualquer hora. Isso significa que não se vai alcançar o saber. É muito importante chegar até a última conclusão dessa organização da vida. Na laboriosidade da vida é preciso saber ler, aprender a fazer um resumo (antes de tudo é preciso aprender a escolher o livro), aprender a sublinhar, aprender a fazer um esquema, ou seja, conseguir trabalhar sem que se coloque o que se aprende numa “bolsa furada”.
Outra coisa importante e difícil hoje é a disciplina da atenção. Vivemos num mundo disperso e por isso nós somos dispersos.
No trabalho do studium, nessa etapa do esforço, há a obrigação da produção. A covardia com que olhamos tudo neste mundo faz com que o estudo nos seja algo muito subjetivo, pessoal, distante, que não exige obrigações. Não deveria ser assim. É preciso alcançar — evidentemente, em proporção ao que estou fazendo, ao momento em que me encontro, ao meu estágio no estudo — a produção. Exigimos isso até das crianças pequenas: “Cadê a redação? Traga aqui! Leia para mim. A redação da próxima semana é essa…” A obrigação de produzir é um meio pelo qual o próprio indivíduo vai medindo, entendendo e alcançando o que está estudando.
Podemos reunir todas essas virtudes, todos esses esforços, toda essa laboriosidade numa palavra que pode surpreendê-los: solidão. É necessária a solidão, mas não a solidão entendida no seu sentindo pejorativo e moderno. Como o homem moderno não possui vida interior, a solidão lhe parece algo terrível, algo negativo, um sinônimo do fracasso. Essa solidão, porém, não consiste em sentar numa bela poltrona vermelha e pensar coisas complicadas, tomando vinho do porto em frente à lareira — esse é um estereótipo do intelectual. Um intelectual é um homem, e por ser homem está obrigado a ter uma vida interior. A solidão é a proteção da verdadeira vida interior, não é algo negativo, mas a proteção de algo positivo.
Todo esse esforço, toda essa disposição, toda essa luta é um esforço pela virtude. A retidão das virtudes é a condição para a vida intelectual. No entanto, o mais importante, o essencial, é esse ato interior da inteligência. Se a essa parte chamamos esforço, podemos chamar a segunda parte de quietude. Então já não se trata de esforço, mas de repouso. Quando a inteligência alcança o seu objeto, há um ato mais eterno que temporal. Os medievais sublinhavam isso com imagens muito impressionantes. Como exemplo, cito o conto do monge que sai de seu mosteiro, em seguida escuta o canto de um pássaro, e então entra num ato de contemplação em que permanece por trezentos anos. Quando retorna ao mosteiro não havia mais uma porta, mas um muro. O que isso significa? Há nesse ato algo mais eterno que temporal. Vemos aqui o próprio ato espiritual, intelectual, que alcança o seu objeto, onde não há esforço, onde não há laboriosidade. A laboriosidade consiste na disposição desse ato, tal como um anel que se dispõe a receber a pedra preciosa do ato da inteligência.
Podemos chamar essa segunda parte de silêncio. Silêncio exterior (como proteção) e silêncio interior, pois não se busca o que já se encontrou. Esse descanso e repouso da inteligência é esse silêncio interior. O efeito próprio desse ato é chamado de gaudium. Há dois aspectos nesse deleite. Ele é principalmente um deleite mais elevado no campo da inteligência e da vontade, e vem acompanhado de um gosto sensível. É preciso ter provado desse gaudium intelectual para saber que muitas vezes nós trocamos ouro por palha. Esse deleite é a felicidade da verdade, e é incomparável.
Gostaria então de fazer uma comparação e lhes mostrar o grande perigo de cair na armadilha de se querer saciar o desejo da vida intelectual com as “cócegas da curiosidade”. É esse o ponto em que queria chegar. O grande inimigo da vida interior, intelectual, o grande assaltante dessa vida, não é a inação, mas a curiosidade, a moeda falsa, aquela que se assemelha à vida intelectual e que não chega a saciar a vida interior, mas “faz cócegas” nela.
No studium, na primeira parte, em lugar da organização, a curiosidade propõe a facilidade da dispersão. A organização e a laboriosidade exigem um esforço duro e doloroso. Santo Tomás sublinha que a vida intelectual exige muito mais esforço, combate, trabalho e laboriosidade do que a vida ativa. Essa vida interior exige um esforço e uma coragem muito maiores. Não se trata de uma fuga covarde da realidade (a vida ativa, porém, muitas vezes é uma fuga covarde da realidade). A curiosidade propõe como solução a facilidade da dispersão.
Lançar-se à procura de todos os objetos significa que não se vai alcançar nenhum deles. É-se arrastado pelo vento do momento. Em lugar das virtudes que dominam as paixões, têm-se os afetos desordenados, profundamente desordenados. Neste ponto, vê-se que o homem que supostamente se dedica ao saber pela curiosidade encontra-se em busca de companhia. Vemos em muitos blogs um exemplo dessa necessidade de companhia, de contato, de falar, de se fazer ouvir, de que outro saiba o que se está pensando. Vê-se a necessidade de se comunicar (só não se sabe o que comunicar), mas é preciso se comunicar.
A solidão é plena; a companhia da curiosidade é profundamente vazia. E essa necessidade do contato e da comunicação do que supostamente se sabe assemelha-se muito ao desejo da droga. Em lugar da síntese, que é laboriosa, absorve-se a confusão eclética das informações. É engraçado quando falamos de algum assunto numa conversa e as pessoas correm imediatamente para a internet, pesquisam no Google, lêem meio parágrafo, voltam à conversa e dizem “já sei do que se trata, já conheço o assunto”. E de fato acham que o conhecem. Elas têm elementos desconexos de informações não assimiladas, não entendidas, e aquilo lhes basta. Deste modo, chegamos à ausência lamentável de produção ou, então, à superabundância de uma pretensa produção vazia.
A respeito dessa comunicação, há o grande perigo da busca das amizades na vida intelectual, da fuga da solidão. A amizade é necessária, mas apenas a verdadeira amizade, e por isso falamos da necessidade de que os priorados sejam o meio e o lugar da realização dessa vida intelectual. Essa vida intelectual, porém, é interior.
Há um livrinho muito bonito, “A vida do pequeno plácido” (Le petit placide). O pequeno plácido, um monge no seu noviciado, tem uma visão mística em que escuta: “ó pequeno plácido, saiba que a vida interior é interior.” Ele fica deslumbrado e sente a necessidade de transmitir a mensagem aos padres, ao abade e até ao Santo Padre. A vida interior é interior. É certo. Precisamos da amizade — e os priorados são o local para isso —, mas é preciso que se realize verdadeiramente essa vida intelectual, interior.
A nossa vida intelectual é fundada principalmente na abstração, consiste em sobrepassar as imagens, o acidental, para se chegar ao essencial. A vida de curiosidade nos enche de afetos e de imagens que se tornam obstáculos cada vez maiores para se alcançar a idéia. Em vez de nos dispormos à idéia, pomos obstáculos no caminho que a ela conduz. Ao deformar o studium, a curiosidade mata a quietude do silêncio, o ato próprio da inteligência, do intus legio. A inteligência já não alcança o objeto, mas vive de um saber alheio. É notável como o homem curioso parte, supostamente, da necessidade de uma total independência de sua vida intelectual e acaba possuindo um saber completamente alheio. Ele não consegue pensar e apenas repete o que escuta.
O exercício intelectual do curioso é um jogo de palavras — e palavras alheias. É lamentável. Além disso, o homem curioso nunca chega a provar da delectatio, desse gaudium, ele não o prova e desconhece o que é essa alegria da verdade. Mas ele pode conseguir o gosto sensível da informação ocasional.
Essa falsidade do prazer intelectual, do prazer causado pela informação ocasional, tem um efeito muito semelhante ao da droga: deslumbra, causa prazer, um afago de si mesmo (o que chamei de “cócegas da curiosidade”), mas passa rápido, pois é vazio e sensível, unicamente sensível. E o falso intelectual, quando sente a necessidade de retornar àquela informação que possuía e não encontra novamente essas “cócegas interiores”, vai então buscar algo novo, a novidade. Gera-se a necessidade da novidade.

Conclusão

Devemos atentar para o perigo de se falar demais. A vida intelectual é impossível no falar demais. Não se pensa quando se fala muito. O excesso de movimento, o correr de um lado ao outro, essa inquietude — até mesmo física — gera a incapacidade.
Ademais, há a covardia diante do peso necessário para se alcançar a vida de estudo. É dolorosa a laboriosidade para se chegar ao estudo.
Por fim, falemos da internet. Ela tem um dom, uma capacidade, uma estrutura que consegue suprir e manter constantemente ao longo de uma vida inteira essa ilusão gerada pelas cócegas da curiosidade. Ela consegue deformar e idiotizar o homem.
A internet é uma armadilha criada para a destruição da vida interior. Não caiam nessa armadilha. Muito já foi dito sobre os pecados contra a pureza na internet, sobre o perigo da perda de tempo na internet e sobre muitos outros riscos concretos. Mas, como disse Dom Galarreta, “a constância na internet é um pecado contra a virtude da esperança”. Acho essa frase muito verdadeira, pois a constância na internet representa a substituição do desejo do mais alto — a inclinação do coração ao que há de mais elevado — pela satisfação com o gorduroso prazer das cócegas da curiosidade, da informação ocasional. Tem-se tudo imediatamente, sem esforço, sem laboriosidade; aqui, agora, sem espera. Aparentemente se tem tudo; mas, na realidade, não se tem nada. A curiosidade conduz o homem à idiotização. Os gregos chamavam um homem sozinho de idiota. A solidão possibilita-nos o encontro com o outro. A curiosidade, porém, isola-nos em nós mesmos e nos torna incapazes de verdadeira relação com o próximo.

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