quarta-feira, 3 de maio de 2017

A LÚCIA .. No Céu, no Céu, no Céu, Um dia a irei ver........




Os três zagaletes a quem apareceu Nossa Senhora eram três crianças absolutamente normais, em nada diferindo dos serranitos seus companheiros de folguedos, ou como eles guardadores de gado.
 A Lúcia era a mais velha. Nascera em 22 de Março de 1907, última dos sete filhos que o Senhor deu a António dos Santos, por alcunha «O Abóbora», e a Maria Rosa, residentes no lugarejo de
Aljustrel que viceja como um oásis na aridez pedregosa da serra.

 Sã e robusta, podia-se confiar com segurança à Lúcia, mesmo na idade em que as crianças são apenas um cuidado para os pais, o pequeno rebanho de ovelhas, tarefa que ela aceitava e cumpria garbosamente.
 Não era de feições delicadas. O único atractivo do seu rosto moreno e arredondado, um tudo nada carrancudo, provinha de dois grandes olhos pretos que brilhavam sob espessas sobrancelhas. O
cabelo forte, negro, dividido a meio sobre a testa curta, saía um pouco do lenço que lhe caía nos ombros. O nariz um pouco achatado e os lábios grossos, a boca larga: qualquer fisionomista ter-lhe-ia atribuído certamente um carácter grosseiro, se não perverso.

 Mas a Lúcia não era nada disso. Pelo contrário, possuía um génio excelente, uma disposição de ânimo particularmente feliz.
 «Gostávamos muito dela porque era muito esperta, muito meiga - dizia-nos a Sr.a Maria dos Anjos, irmã mais velha. - Quando, já crescidica, voltava a casa com o gado, ia deitar-se ao colo da mãe e, encostadinha, fazia-lhe muitas momices. Abraçava-a, beijava-a. Nós, as irmãs mais velhas, fazíamos pouco dela e dizíamos: Lá vem a menina dos momos e das nicas -e arreliávamo-la de todo. Mas a Lúcia, no dia seguinte, voltava à mesma. Depois de me nascer a primeira menina é que era vê-la. Voltava da serra, tapava as ovelhas e corria aos pulos a minha casa - que ficava em frente à da minha mãe. - Pegava na pequerrucha ao colo e cobria-a de beijos, que nem parecia criatura da nossa terra.
 Era muito amiguinha de crianças e todas morriam por ela. Às vezes, juntavam-se no pátio da nossa casa oito, dez, doze, e ela, contente, enfeitava as mais pequenitas com flores, com heras; fazia procissões com santinhos, prantava andores, tronos e, como se esti­vesse na igreja, cantava versos a Nossa Senhora. Ainda me lembro bem dos que ela mais gostava:



No Céu, no Céu, no Céu, 
Um dia a irei ver!

Virgem pura, tua ternura
E de alívio ao meu penar;
Noite e dia, de Maria,
A beleza hei-de cantar!



E findava tudo com a bênção ...
 Sabia muito bem entreter os pequeninos que as mães iam deixar na nossa casa, antes de irem para a fazenda ou charneca. Como eu estava todo o dia ao tear e a minha irmã Carolina a costurar, sempre íamos olhando por eles. Mas quando a Lúcia estava, ainda cachopica, ficavam à conta dela e nós descansadas.
 Nos jogos ninguém a apanhava. Era às escondidas, ao regougou. Umas por baixo das figueiras, outras por detrás das silvas, outras metiam-se debaixo das camas, em toda a banda onde pudesse haver um esconderijo. E no entanto, a que ficava de fora era a gritar:



Regougou, regougou, regougou, 
Todos se escondem, 
Que eu já la vou!

 Jogavam o botão, às pedrinhas, às prendas ... e quando tudo estava enfadado de jogar, sentavam-se à sombra das figueiras, e a Lúcia, no meio da roda, começava a contar histórias que nunca mais tinham fim. Umas que ouvia contar, e outras que, se calhar, ela inventava».

 Estava já posta à prova a excelente memória da Lúcia que, mais tarde, podia reconstruir, nos seus mais pequenos pormenores, os colóquios com o Anjo e a Mãe do Céu.
 Após vinte e cinco anos de vida passada no recolhimento, alheada por completo das coisas profanas, deveria ainda recordar e escrever - a pedido do Sr. Bispo de Leiria -as quadras campestres da sua infância, algumas das quais acompanhavam as danças em que, entre as suas amigas, era exímia.
 «Era muito conversadeirica, muito lhanazinha, muito ladina, e muito meiga, até com o pai: ó meu pai aqui, ó meu pai acolá!
 Ai Jesus, que cachopa! -exclamava o ti Manuel Marta. - Eu já futurava: Tu hás-de vir a ser ou muito boa ou muito ruim».
 Como todas as moçoilas da serra, a Lúcia gostava de se adornar nas ocasiões das festas, com cordões de oiro, com grandes arrecadas que caíam até aos ombros, e um gracioso chapelinho guarnecido de contas doiradas e penas de várias cores.
 «Nos arredores - confessa ela - não havia outra rapariga tão bem enfeitada e as minhas irmãs e a madrinha Teresa pavoneavam­-se de me ver tão bonita. As outras pequenas rodeavam-me em nu­merosos grupos, admirando a beleza de tantos atavios: eu impava destas atenções. Na verdade, a vaidade era o meu pior ornamento. Todos mostravam simpatia e estima por mim, exceptuada uma orfãzita que a madrinha Teresa tinha tomado consigo à morte da mãe. Parecia temer que eu roubasse parte da herança que ela esperava, e de certo não se teria enganado, se Nosso Senhor não me tivesse destinado herança bem mais preciosa».

Era inesgotável nos seus inventos. Conta a Sr. a Maria dos Anjos:

 «Um dia, já estávamos ao cair da noite, e a Lúcia, depois de tapar as ovelhas, desapareceu. Quando mais tarde entrou em casa, a mãe perguntou-lhe de onde vinha e ela: Andei a pedir, mais a Jacinta e o Francisco. Fomos a casa do ti José das Neves, da ti Maria Antónia e da madrinha Teresa que nos deu maçãs. Chegávamos à porta e dizíamos, a fingir de pedintes: Ó tia, dê-me alguma coisinha por amor de Deus. Depois rezávamos o Pai Nosso. Muito alegre pediu uma faca e partiu as maçãs repartindo-as com a gente. A Lúcia era de muito bom coração, muito amiga da gente; foram só as aparições a levar a guerra à família».
 O ambiente familiar era o mais favorável ao desenvolvimento das naturais disposições da Lúcia. A mãe -e na serra é a mãe que cria e educa os filhos - era uma mulher às direitas, uma mulher de oiro; tinha tacto, tinha inteligência.
 A Sr.a Maria Rosa, profundamente convencida do mau efeito que podia produzir o exemplo do pai, redobrava de esforços e cui­dados na educação dos filhos, e procurava desenvolver neles aquelas virtudes cristãs que eram em si própria como que urna segunda na­tureza.

 «A nossa mãe - dizia-nos Maria dos Anjos - sabia ler a letra redonda, mas não sabia escrever. Todas as noites, especialmente durante o Inverno, lia-nos algum bocado do Antigo Testamento ou do Evangelho, ou então alguma coisa sobre Nossa Senhora da Nazaré ou de Lourdes. Quando foi das Aparições, aqui na Cova da Iria, lembro-me de ela dizer, toda arrenegada, para a Lúcia: Pensas tu, que lá porque Nossa Senhora apareceu em Lourdes e na Nazaré, já te apareça também a ti? Durante a Quaresma, já sabíamos que as lei­turas eram sempre sobre a Paixão de Nosso Senhor. E a Lúcia deco­rava logo tudo e depois contava às crianças.
 Ensinava-nos a doutrina e, até que a não tivéssemos bem de cor, não nos deixava ir brincar. Não quero ficar envergonhada - dizia ela - quando o Sr. Prior perguntar a doutrina aos meus filhos. E não tinha de que se envergonhar, porque o Sr. Prior sempre ficava satis­feito connosco e até, cachopitas ainda, nos entregava na igreja, gru­pos de outras crianças para nós ensinarmos. Não tinha eu mais que
nove anos, quando ele me fez catequista. Mas a minha mãe não se contentava que a gente tivesse a doutrina na ponta da língua, queria que a entendêssemos e dava-nos todas as explicações.
 A gente saber a doutrina - dizia ela -e não saber as explicações  não tem graça nenhuma. E nós fazíamos-lhe muitas perguntas e ela sempre a responder que nem o Sr. Prior na Igreja. Um dia disse­
-lhe que não percebia como é que o fogo do inferno não queima e não destrói os condenados como acontece à lenha na fogueira. Então não sabem - respondeu - que quando se deita um osso ao lume, fica sempre a arder e parece que não se desfaz? - E nós muito assustadas ficávamos a pensar nisso e a fazermos os propósitos de não pecar, para não cair naquele fogo terrível.
 Mas não era só a nós que a minha mãe ensinava a doutrina.
Outros pequenos também iam lá a casa e não só de Aljustrel, mas da Casa-Velha e até de Boieiros. Mesmo pessoas crescidas vinham para o pé dela para aprender o catecismo.
 No mês de Maio e no.das Almas, como na Quaresma, rezáva­mos todos os dias o terço à lareira ou na sala; e quando saíamos com o gado sempre recomendava que levássemos o terço no bolso. -Rezem lá - dizia - as contas a Nossa Senhora, depois de merendar e uns Padre-Nossos a Santo António para não perderem as ovelhas >>.



Santíssimas graças e louvor
Sejam dadas a Jesus Cristo, Nosso Senhor 
Por tantos bens e esmolas que nos tem feito
E mais tem para nos fazer.
Sejam dadas à sua honra e louvor 
Pelo amor de Deus, Nosso Senhor.


E sempre acrescentávamos alguns Pai-Nossos pelas alminhas das nossas obrigações.

De manhã, antes de nos levantarmos, e à noite, antes de nos deitarmos, com o Acto de contrição e outros Pai-Nossos, não nos deixava esquecer o nosso Anjo da Guarda.

Em louvor do nosso Anjinho da Guarda 
Que nos guarde de noite e de dia
E que ande sempre em nossa companhia.



 «A alguém - conta a Lúcia - que uma vez dizia a minha mãe: Mas até aqui não era pecado bailar; porque veio um pároco novo, já é pecado? Como são essas coisas?- Respondeu minha mãe: Não sei:
o que sei é que o Sr. Prior não quer que se baile e, portanto, as minhas filhas não voltam a esses ajuntamentos: quando muito, dei-xá-las-ei bailar alguma coisa entre família, porque diz o Sr. Prior que em familia não faz mal>>.
Para ela a voz do Sr. Prior era a voz de Deus e cumpria à risca, sem discutir, as disposições que ele ditava do púlpito.
 Esta confiança absoluta no pároco que duvidava, ou melhor, negava absolutamente a verdade das Aparições, e a sua humildade bastam para explicar, quanto a nós, a relutância da Sr.• Maria Rosa em admitir, quase até ao fim da vida, a graça estupenda que a Virgem concedera à filha. Pode ser coisa ruim que anda a aparecer às crian­ças - dizia-lhe o Sr Prior. Como poderia, pois, ela acreditar que fosse Nossa Senhora?
 «Houvesse o que houvesse, ao sol posto, - continua Maria dos Anjos - queria-nos todas em casa: nem nos dias de festa, em que nós gostaríamos tanto de folgar como as outras. Nada! A hora da ceia era hora sagrada.
 Queria que fôssemos humildes e trabalhadeiras, e ai de nós se nos apanhava em mentira. Era mesmo uma das coisas em que ela era mais rigorosa. À mais pequena mentirica trabalhava logo o cabo da vassoura.
 A devoção pelas coisas da Igreja e sobretudo pelo Santíssimo
Sacramento incutia-nos ela, mal a gente abria os olhos. Nesse tempo a Sagrada Comunhão só se fazia aos dez anos e era preciso saber bem a doutrina. A Lúcia todavia comungou já aos seis anos. Foi numa ocasião em que veio por cá o Sr. Padre Cruz; o Sr. Prior não
queria fazer excepção; mas quando o Sr. Padre Cruz, que a tinha interrogado, deu a sentença: «a pequena sabe e sabe bem!>> não es­teve com mais coisas, deixou-a ir.
Ainda tenho bem presente a alegria e a satisfação da nossa mãe e a festa que se fez em casa!
   Mães de outros tempos! ...





Era uma Senhora mais Brilhante que o Sol
Pe. João M. de Marchi, I.M.C.

Fonte:
http://paramaiorgloriadedeus.blogspot.com.br/

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